Um dos formatos mais interessantes para se encontrar olhares radicais da linguagem é o curta-metragem, que, no meio de uma intensa programação de longas-metragens, sejam estes inéditos em competição, sessões especiais ou lindos clássicos restaurados, é um corpo estranho em festivais.
Já ouvi muito aquela pergunta, “mas é filme ou curta-metragem?”, como se filme fosse apenas o longa – e muitas das vezes ficção e em live-action (“mas é filme ou documentário?”, “mas é filme ou animação?” também são recorrentes). A ideia do curta costuma ser confundida e restringida a um exercício de estilo para futuros longas de cineastas – o que, obviamente, é um pensamento absurdo, são formatos independentes. O curta e o média-metragem são constantemente revisitados por cineastas já muito experientes, ou mesmo foram as únicas formas de expressão de importantes ruptores da linguagem cinematográfica – só para citar alguns: Kenneth Anger, Norman McLaren, Takashi Ito, Stefan e Franciszka Themerson, Maya Deren, entre outros.
Quando se tem muitos longas interessantes na programação de um festival, é normal vermos as sessões dos curtas consideravelmente mais vazias, mas sempre me proponho a dar uma atenção especial a elas. Nesses quatro dias em que estive acompanhando o 6º Olhar de Cinema em Curitiba, consegui assistir a nove curtas, separados em três sessões, sendo um deles “Estrangeiro” (Pohn talay, 2009), com direção de Anocha Suwichakornpong e Wichanon Somunjarn, que acompanhou a exibição de “História Mundana” (Jao Nok Krajok, 2009), o primeiro longa-metragem de Suwichakornpong. Mas sobre esse eu escrevo depois, quando postar os comentários sobre o que assisti dessa brilhante cineasta. No texto de hoje, debruço-me em cinco curtas da Mostra Competitiva e outros três do consagrado cineasta francês Jean-Marie Straub, exibidos em sessão especial.
O que mais me chamou a atenção nos curtas em competição foi o recorte consciente acerca da temática e experimentação com o dispositivo. Nyo Vweta Nafta (Idem, 2017), do português Ico Costa, foi o vencedor de Melhor Curta-metragem na última edição do Cinéma du Réel. Por ser filmado em 16mm, adquirindo então uma coloração singular e com ruídos, esteticamente parece um filme deslocado de seu tempo, acompanhando jovens de Moçambique que conversam sobre colonização, subempregos e o impacto tecnológico em suas vidas, por vezes utilizando o recurso do voice-over, inevitavelmente remetendo a “Eu, um Negro” (Moi, un Noir, 1958), importante filme etnográfico dirigido por Jean Rouch, que viria a mudar o jeito de se filmar o real e as suas multi-ramificações, caminhando ao cinema-verdade e ao cinema-direto, que por sua vez influenciaram os cinemas novos ao redor no mundo na década de 1960. No entanto, ainda que a o filme de Ico Costa apresente essa forma curiosa, não senti que o assunto tratado trouxe grandes reflexões.
Ocorridos em um Recinto Escuro (Events in a Cloud Chamber, 2016) também parte de imagens captadas em película para contar uma história que se perdera no tempo. O título do filme remete a um curta-metragem filmado em 1969 por Akbar Padamsee, um dos pioneiros da pintura moderna na Índia, cuja obra fora admirada por personalidades importantes, como André Breton. O cineasta indiano Ashim Ahluwalia faz um costura de imagens de atmosferas distintas, dando a ilusão que arquivo, família, arte e memória transitam num mesmo tempo-espaço – outra obra que, pelo formato escolhido, é uma viagem ao passado. São imagens que reconstroem não só o filme perdido de Padamsee, mas também que revisitam a história desse grande pintor que viu-se no ostracismo ingrato da arte.
A persistência da memória é assunto de outro curta-metragem, Ciudad Maya (Idem, 2016), dirigido pelo mídia-artista mexicano Andrés Padilla Domene. O filme abre com imagens de um tipo de afresco representando a civilização maia invadida por extraterrestres e pelas principais tecnologias dos séculos XX e XI. Em seguida, uma voz de deus, imponente, canta uma série de produtos de alta tecnologia que transformam o cotidiano do homem contemporâneo, do celular ao Wi-Fi. Aqui, o tempo é um futuro distópico revisitando um passado com saudosismo, em que um grupo de arqueólogos reconstroi e mapeia importantes monumentos históricos que serviram de exploração turística – não obstante, o serviço arqueológico só se dá com o auxílio da tecnologia digital. É um experimento interessante sobre a importância da conservação de culturas, mas que também, ao longo de seus 24 minutos, pode parecer um pouco repetitivo.
Uma atmosfera de desolação ressurge no mais interessante de todos os curtas assistidos, O Disco Resplandece (La disco resplandece, 2016), recém premiado como o Melhor Curta-metragem no festival argentino BAFICI. Não conhecia o trabalho do jovem cineasta espanhol Chema García Ibarra, que já teve filmes selecionados para os festivais de Berlim e Cannes. Numa rápida pesquisa, vi que o diretor costuma trabalhar com o gênero da ficção científica, o que reforça uma estética crepuscular, de luzes brilhantes, neste seu recente curta. “O Disco Resplandece” é um filme sobre amigos aproveitando um fim de semana regrado a músicas e bebedeira, percorrendo espaços vazios, dando uma estranha sensação de fim de mundo. Talvez o filme queira realmente frisar essa finitude pessoal – a diversão e a morte, o banal e o excêntrico, uma juventude solitária, embora em companhia. O mal dos tempos e o mal dos trópicos.
Também na Mostra Competitiva, Selva (Idem, 2017), de Sofía Quirós, foi selecionado para a Semana da Crítica no Festival de Cannes desse ano. É um filme que aposta muito em seu potente som para contar uma história sobre despedidas. Tendo a ilha de Tortuguero, na Costa Rica, como cenário principal, uma mulher já de idade parece recordar de seus tempos de menina, uma menina de nome Selva (Smashleen Gutiérrez), que possui uma afetuosa relação com seu irmão. Sofía Quirós, consegue extrair um naturalismo empático de suas personagens, criando um clima bastante estranho, com imagens fantasmagóricas e cine-sensíveis, no entanto, nota-se o seu desejo em endossar um “formato de festival”, carregando alguns cacoetes de impacto previsível.
Fugindo de obviedades e muito mais herméticos – e porque não anárquicos? -, os curtas-metragens exibidos em sessão especial à obra de Jean-Marie Straub são trabalhos que incomodam o espectador frente a seu engajamento fragmentário e de requinte intelectual. Enquanto Oú en êtes-vous, Jean-Marie Straub? (2016) é um autorretrato construído por intermédio da ausência física do diretor e pela voz do espaço, o espaço o qual habita e de onde se esconde, Pour Renato (2015) é uma pequena homenagem a seu amigo Renato Berta, fotógrafo de alguns de seus filmes. Nesse filme-celebração, Straub evoca imagens de sua adaptação para a peça de Pierre Corneille, “Les yeux ne veulent pas en tout temps se fermer, ou Peut-être qu’un jour Rome se permettra de choisir à son tour” (1970), filme dirigido ao lado de sua companheira e constante colaboradora Danièle Huillet. O filme se passa no antigo Império Romano, discorrendo, com rimas de poesia, impactos culturais e políticos para elucidar o contemporâneo. No fim, Straub adiciona imagens do set de filmagem com a presença de Renato Berta por trás de sua câmera. Confesso que, como já conheço um pouco da obra desses cineastas, acompanhar textos e imagens no universo eloquente de Straub e Huillet é um tanto desafiador. A famosa e muito citada “zona de conforto” do espectador é invadida por um ritmo deveras particular, por vezes violento e sempre muito questionador.
Não por acaso, é assim também que me senti diante da dinamite que é Não-Reconciliados (Nicht versöhnt oder es hilft nur gewalt wo gewalt herrscht, 1965), o segundo filme de Straub realizado na Alemanha e roteirizado também por Danièle Huillet. Saber o contexto pessoal do diretor é importante para entender essa obra. Straub e Huillet se mudaram para a Alemanha no início dos anos 1960, assim Straub pôde evitar o serviço militar na Argélia. Desse modo, fizeram juntos um curta-metragem, “Machorka-Muff” (1963), e em seguida o média “Não-Reconciliados”, ambas adaptações da obra de Heinrich Böll. “Não-Reconciliados” mostra a trajetória de uma família burguesa como traço de ascensão do nazismo na Alemanha – e traços coloniais europeus, que firmam tradições e moralismos. É um filme verborrágico, amplamente elíptico, que evidencia uma problemática político-cultural com o cinismo de suas personagens, de princípios egocêntricos e autoritários. Sua abordagem não trabalha com símbolos fáceis, talvez as últimas sequências ajudem melhor na compreensão dos fatos, logo, é um filme que merece uma melhor atenção e revisitação.