Olhar de Cinema – “Rey”, ou a colonização no imaginário cinematográfico

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É costume do cinema, desde as suas primitivas origens, a dramatização de eventos e personalidades históricas, uma barganha com o tempo, a leitura em movimento daquilo que antes se convinha apenas às letras embebecidas de tinta ou quadros e afrescos cientes de sua inércia e efemeridade. Talvez o cinema seja a forma mais viva para a experimentação histórica, experimentação ainda pictórica, que não se restringe a fatos isolados ou relatos recolhidos com o vento – narrar e criar com o verbo, cores e texturas, como um deus.

Lembro de uma anedota contada por uma professora. Quando ela lecionava História num colégio judaico, disse aos alunos que não era possível afirmar que Moisés abrira o Mar Vermelho, por mais que existissem passagens bíblicas contando sobre o caso. “Aconteceu, sim”, rebateu um aluno, “eu vi num filme!”, completou, depois referindo-se à clássica cena de  um Charlton Heston em persona de Moisés, conduzindo os hebreus à Terra Prometida em “Os Dez Mandamentos” (The Ten Commandments, 1956), de Cecil B. DeMille. Um filme tem esse caráter de transcendência imaginativa, doutrinadora. que desmancha o tempo e o espaço, fracionado-os em muitas memórias e em histórias particulares.

Rey (2017), do chileno-americano Niles Atallah, parte desta poética para embarcar duas (ou mais) visões históricas, a factual e a cinematográfica, e ainda uma história pessoal imaginada, que não pertence ao documento ou às artes. “Rey”, antes de um épico onírico e de autorreflexão fílmica, apresenta uma inspirada composição psíquica de seu protagonista, o aventureiro e advogado francês Orélie-Antoine de Tounens, que em meados do século XIX teria sido nomeado Rei da Araucanía e da Patagônia, num momento de hostilidades com a cultura indígena local, perpassando os interesses militares e econômicos dos governos do Chile e da Argentina. Niles Atallah imagina Tounens num físico messiânico, mas cuja consciência é ingênua e pouco lúcida como de um Dom Quixote, satirizando assim o pensamento de um colonizador, que vive num mundo fragmentado e imaginário de utopia e egocentrismo, um mundo que flerta com os sonhos, adquirindo imagens surrealistas que muito lembram a obra do também cineasta chileno Alejandro Jodorowsky.

Rithy Panh, em seu filme-ensaio “A Imagem que Falta” (L’image manquante, 2013), diante do vazio de imagens físicas da violenta ditadura do Khmer Vermelho no Camboja entre 1975 e 1979, reencena a História com elementos e técnicas cinematográficas; seu filme, então, passa a ser um dos primeiros documentos históricos que comprovam o sangue, a crueldade e também a resistência daquele período. Niles Atallah faz um exercício similar em “Rey”, usando da dramatização, do lúcido e plástico teatral, e de imagens de aquivo ressignificadas, caracterizando-o como um exercício de texturas lisérgicas, que pensa a História e seus personagens literalmente vivendo num filme de cinema. Orélie-Antoine de Tounens habita um mundo de 24 quadros por segundo, de uma película cheia de ruídos e corrosões do tempo, uma película que poderia ter sido descoberta e manipulada por Bill Morrison (Decasia, 2002). É a jornada de alguém que acredita ser um heroi, um rei, mas que deságua num discurso político de contradições coloniais.

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Olhar de Cinema – Os olhares curtos

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Um dos formatos mais interessantes para se encontrar olhares radicais da linguagem é o curta-metragem, que, no meio de uma intensa programação de longas-metragens, sejam estes inéditos em competição, sessões especiais ou lindos clássicos restaurados, é um corpo estranho em festivais.

Já ouvi muito aquela pergunta, “mas é filme ou curta-metragem?”, como se filme fosse apenas o longa – e muitas das vezes ficção e em live-action (“mas é filme ou documentário?”, “mas é filme ou animação?” também são recorrentes). A ideia do curta costuma ser confundida e restringida a um exercício de estilo para futuros longas de cineastas – o que, obviamente, é um pensamento absurdo, são formatos independentes. O curta e o média-metragem são constantemente revisitados por cineastas já muito experientes, ou mesmo foram as únicas formas de expressão de importantes ruptores da linguagem cinematográfica – só para citar alguns: Kenneth Anger, Norman McLaren, Takashi Ito, Stefan e Franciszka Themerson, Maya Deren, entre outros.

Quando se tem muitos longas interessantes na programação de um festival, é normal vermos as sessões dos curtas consideravelmente mais vazias, mas sempre me proponho a dar uma atenção especial a elas. Nesses quatro dias em que estive acompanhando o 6º Olhar de Cinema em Curitiba, consegui assistir a nove curtas, separados em três sessões, sendo um deles “Estrangeiro” (Pohn talay, 2009), com direção de Anocha Suwichakornpong e Wichanon Somunjarn, que acompanhou a exibição de “História Mundana” (Jao Nok Krajok, 2009), o primeiro longa-metragem de Suwichakornpong. Mas sobre esse eu escrevo depois, quando postar os comentários sobre o que assisti dessa brilhante cineasta. No texto de hoje, debruço-me em cinco curtas da Mostra Competitiva e outros três do consagrado cineasta francês Jean-Marie Straub, exibidos em sessão especial.

O que mais me chamou a atenção nos curtas em competição foi o recorte consciente acerca da temática e experimentação com o dispositivo. Nyo Vweta Nafta (Idem, 2017), do português Ico Costa, foi o vencedor de Melhor Curta-metragem na última edição do Cinéma du Réel. Por ser filmado em 16mm, adquirindo então uma coloração singular e com ruídos, esteticamente parece um filme deslocado de seu tempo, acompanhando jovens de Moçambique que conversam sobre colonização, subempregos e o impacto tecnológico em suas vidas, por vezes utilizando o recurso do voice-over, inevitavelmente remetendo a “Eu, um Negro” (Moi, un Noir, 1958), importante filme etnográfico dirigido por Jean Rouch, que viria a mudar o jeito de se filmar o real e as suas multi-ramificações, caminhando ao cinema-verdade e ao cinema-direto, que por sua vez influenciaram os cinemas novos ao redor no mundo na década de 1960. No entanto, ainda que a o filme de Ico Costa apresente essa forma curiosa, não senti que o assunto tratado trouxe grandes reflexões.

Ocorridos em um Recinto Escuro (Events in a Cloud Chamber, 2016) também parte de imagens captadas em película para contar uma história que se perdera no tempo. O título do filme remete a um curta-metragem filmado em 1969 por Akbar Padamsee, um dos pioneiros da pintura moderna na Índia, cuja obra fora admirada por personalidades importantes, como André Breton. O cineasta indiano Ashim Ahluwalia faz um costura de imagens de atmosferas distintas, dando a ilusão que arquivo, família, arte e memória transitam num mesmo tempo-espaço – outra obra que, pelo formato escolhido, é uma viagem ao passado. São imagens que reconstroem não só o filme perdido de Padamsee, mas também que revisitam a história desse grande pintor que viu-se no ostracismo ingrato da arte.

A persistência da memória é assunto de outro curta-metragem, Ciudad Maya (Idem, 2016), dirigido pelo mídia-artista mexicano Andrés Padilla Domene. O filme abre com imagens de um tipo de afresco representando a civilização maia invadida por extraterrestres e pelas principais tecnologias dos séculos XX e XI. Em seguida, uma voz de deus, imponente, canta uma série de produtos de alta tecnologia que transformam o cotidiano do homem contemporâneo, do celular ao Wi-Fi. Aqui, o tempo é um futuro distópico revisitando um passado com saudosismo, em que um grupo de arqueólogos reconstroi e mapeia importantes monumentos históricos que serviram de exploração turística – não obstante, o serviço arqueológico só se dá com o auxílio da tecnologia digital. É um experimento interessante sobre a importância da conservação de culturas, mas que também, ao longo de seus 24 minutos, pode parecer um pouco repetitivo.

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Uma atmosfera de desolação ressurge no mais interessante de todos os curtas assistidos, O Disco Resplandece (La disco resplandece, 2016), recém premiado como o Melhor Curta-metragem no festival argentino BAFICI. Não conhecia o trabalho do jovem cineasta espanhol Chema García Ibarra, que já teve filmes selecionados para os festivais de Berlim e Cannes. Numa rápida pesquisa, vi que o diretor costuma trabalhar com o gênero da ficção científica, o que reforça uma estética crepuscular, de luzes brilhantes, neste seu recente curta. “O Disco Resplandece” é um filme sobre amigos aproveitando um fim de semana regrado a músicas e bebedeira, percorrendo espaços vazios, dando uma estranha sensação de fim de mundo. Talvez o filme queira realmente frisar essa finitude pessoal – a diversão e a morte, o banal e o excêntrico, uma juventude solitária, embora em companhia. O mal dos tempos e o mal dos trópicos.

Também na Mostra Competitiva, Selva (Idem, 2017), de Sofía Quirós, foi selecionado para a Semana da Crítica no Festival de Cannes desse ano. É um filme que aposta muito em seu potente som para contar uma história sobre despedidas. Tendo a ilha de Tortuguero, na Costa Rica, como cenário principal, uma mulher já de idade parece recordar de seus tempos de menina, uma menina de nome Selva (Smashleen Gutiérrez), que possui uma afetuosa relação com seu irmão. Sofía Quirós, consegue extrair um naturalismo empático de suas personagens, criando um clima bastante estranho, com imagens fantasmagóricas e cine-sensíveis, no entanto, nota-se o seu desejo em endossar um “formato de festival”, carregando alguns cacoetes de impacto previsível.

Fugindo de obviedades e muito mais herméticos – e porque não anárquicos? -, os curtas-metragens exibidos em sessão especial à obra de Jean-Marie Straub são trabalhos que incomodam o espectador frente a seu engajamento fragmentário e de requinte intelectual. Enquanto Oú en êtes-vous, Jean-Marie Straub? (2016) é um autorretrato construído por intermédio da ausência física do diretor e pela voz do espaço, o espaço o qual habita e de onde se esconde, Pour Renato (2015) é uma pequena homenagem a seu amigo Renato Berta, fotógrafo de alguns de seus filmes. Nesse filme-celebração, Straub evoca imagens de sua adaptação para a peça de Pierre Corneille, “Les yeux ne veulent pas en tout temps se fermer, ou Peut-être qu’un jour Rome se permettra de choisir à son tour” (1970), filme dirigido ao lado de sua companheira e constante colaboradora Danièle Huillet. O filme se passa no antigo Império Romano, discorrendo, com rimas de poesia, impactos culturais e políticos para elucidar o contemporâneo. No fim, Straub adiciona imagens do set de filmagem com a presença de Renato Berta por trás de sua câmera. Confesso que, como já conheço um pouco da obra desses cineastas, acompanhar textos e imagens no universo eloquente de Straub e Huillet é um tanto desafiador. A famosa e muito citada “zona de conforto” do espectador é invadida por um ritmo deveras particular, por vezes violento e sempre muito questionador.

Não por acaso, é assim também que me senti diante da dinamite que é Não-Reconciliados (Nicht versöhnt oder es hilft nur gewalt wo gewalt herrscht, 1965), o segundo filme de Straub realizado na Alemanha e roteirizado também por Danièle Huillet. Saber o contexto pessoal do diretor é importante para entender essa obra. Straub e Huillet se mudaram para a Alemanha no início dos anos 1960, assim Straub pôde evitar o serviço militar na Argélia. Desse modo, fizeram juntos um curta-metragem, “Machorka-Muff” (1963), e em seguida o média “Não-Reconciliados”, ambas adaptações da obra de Heinrich Böll. “Não-Reconciliados” mostra a trajetória de uma família burguesa como traço de ascensão do nazismo na Alemanha – e traços coloniais europeus, que firmam tradições e moralismos. É um filme verborrágico, amplamente elíptico, que evidencia uma problemática político-cultural com o cinismo de suas personagens, de princípios egocêntricos e autoritários. Sua abordagem não trabalha com símbolos fáceis, talvez as últimas sequências ajudem melhor na compreensão dos fatos, logo, é um filme que merece uma melhor atenção e revisitação.

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Olhar de Cinema – “Um Sonho Tranquilo”

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O sul-coreano Um Sonho Tranquilo (Chun-mong, 2016) é sobre estranhos no paraíso, um paraíso monocromático deslocado do tempo e da órbita mundana – entende-se: sua estrutura é como um sonho de ações condensadas a espaços que parecem existir unicamente com a interação dos personagens, espaços em que transitam fantasmas dos pecadores, daqueles que não sobreviveram à alienação de uma ordem separatista, logo, antes de seu apelo metafísico, é nítido o seu interesse político ao retratar uma Coreia frustrada em suas ideologias.

Zhang Lu faz o seu Jules e Jim. Três amigos se interessam por uma mesma mulher, a garçonete Ye-ri (Han Ye-ri), que cuida do pai doente, possivelmente vítima de um derrame que o privou dos movimentos do corpo e de sua lucidez. Os rapazes são caricaturados e ingênuos, nem por isso perdem o seu caráter humano. Ik-June (Yang Ik-june) é um membro de uma gangue que está com problemas com o “chefão” Água-Viva; Jung-bum (Park Jung-bum) é um desertor norte-coreano que perdeu o seu emprego por “possuir olhos tristes demais”, frequentemente recriminado por suas aspirações políticas e considerado um comunista pelos colegas; e Jong-bin (Yoon Jong-bin) é um sujeito infantilizado, de arquétipo nerd, que sofre de ataques epilépticos. Inicialmente, a singularidade dos personagens funciona como uma combustão de inverossimilhança, mas a relação entre eles é construída de uma maneira tão doce e imaginativa que pouco a pouco o espectador se vê embarcado, sonhando junto.

A simpatia do filme se advém de um falso romance idílico. Seu roteiro é focado na amizade sem malícias, num amor tão puro e íntimo que transforma as empreitadas desses três patetas em divertidas brincadeiras de criança. É um retrato sobre pessoas injustiçadas, que tiveram seus sonhos cassados, vagando à esmo, frequentando um bar de solitários, presos a um tempo-amador, um tempo que não transita na esfera da razão lógica. O tempo do refúgio e o tempo da morte. “Isso parece uma cena de um filme”, diz Ye-ri após uma situação completamente irreal acontecer dentro de seu estabelecimento. “Um Sonho Tranquilo” é um filme-criança, peralta, que compartilha o seu pião e brinca de pique-esconde, ciente de que é um filme, ciente de que está sendo exibido numa sala escura. É Jim Jarmusch, François Truffaut, Béla Tarr ou mesmo Hong Sang-soo homenageados em tempos de desesperança. É um guarda-roupa perdido num beco, esperando ser aberto para espalharem-se as rezas daqueles que ainda acreditam que podem, um dia, acordar.

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