Olhar de Cinema – “Alipato – A Brevíssima Vida de um Malandro”

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Assim que cheguei em Curitiba, ouvi muitos burburinhos sobre o filme filipino Alipato – A Brevíssima Vida de um Malandro (Ang Napakaigsing Buhay Ng Alipato, 2016), que foi definido pelos programadores como “uma afronta ao espectador”, um filme que possivelmente geraria um enorme desconforto. Sendo assim, a curiosidade fez com que eu abdica-se a sessão de “História da Noite” para conhecer essa obra que dificilmente conseguirá uma distribuição.

Se por um lado o premiado cineasta Lav Diaz retrata a situação pós-ditadura nas Filipinas com bastante naturalismo, filmes que mostram o reflexo de uma gestão autoritária de mais de vinte anos do ex-presidente Ferdinando Marcos, Khavn De La Cruz filma “Alipato” enquanto ficção científica, os anos de 2025 e 2053, para retratar a sociedade e a política contemporâneas, caminhando a um novo sistema autocrático com o atual regime do presidente Rodrigo Duterte, que se comparou à Hitler em setembro do ano passado ao expor seu programa de erradicação das drogas no país: chacinando os dependentes químicos (em agosto de 2016, estima-se que 36 pessoas eram mortas por dia na guerra contra as drogas).

Neste quesito, Khavn é corajoso o suficiente ao mostrar um cenário pós-apocalíptico nas Filipinas, uma verdadeira guerra civil onde uma gangue de crianças toma o poder, cometendo as mais impensáveis das atrocidades. São crianças que conhecem a fome, que convivem entre barracos e depósitos de lixo, e que buscam uma liberdade de expressão e de autoafirmação por intermédio da violência, das drogas e do sexo. Khavn De La Cruz, num flerte com Larry Clark (Kids, 1995) ou Harmony Korine (Trash Humpers, 2005), faz um trabalho amplamente subversivo, antiestético, com imagens que soam grotescas, que perturbam e ressonam por muito tempo após os créditos finais do filme. É uma terra de ninguém, da desesperança, do desespero. Um concerto da morte, em que lápides se enraízam cotidianamente. Mas Khavn não faz de “Alipato” uma estetização da violência, embora gráfica, embora sempre muito presente. É nítido o seu engajamento crítico, que se firma a um hiper-realismo sensorial – o filme causa medo, pode sim despertar uma angústia, a angústia da incerteza, se até o fim do dia não nos transformaremos num porco que caminha ao abate.

“Alipato” é profano. Sua câmera sofre de sociopatia, uma câmera urubu, que sabe como enquadrar a carne e o lixo. Uma câmera que se permite ao tempo. A imagem inicial já é a primeira provocação, a gente sente. A gente também ouve os gritos, o apito, até sente o cheiro da fumaça tóxica, do fascismo que se coloca como o desastre de Chernobyl. A transmutação da mente – do homem que dialoga com a câmera, que catarra palavras inaudíveis, intransferíveis, inalcançáveis…  O homem de um futuro-presente. Dos desfigurados, dos violentados, dos que não venceram a cólera. É o homem bruxo, o homem bicho. O homem que nasce com células do ódio no cordão umbilical.

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