Olhar de Cinema – Duas visões sobre a exploração dos corpos

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Dois filmes da Mostra Competitiva assistidos ontem trabalham com a exploração dos corpos em maneiras distintas. O primeiro, Máquinas (Machines, 2016), parte de uma imersão em uma fábrica têxtil em Gujarat, na Índia, acompanhando a exaustiva jornada de trabalho dos operários, homens e mulheres, crianças e adultos, sempre captados por uma ótica observacional. Seus corpos são como máquinas de produção, acostumados com a insalubridade do local, que brilham com o suor, o óleo que se mescla à fuligem, pontos de reflexos da pouca luz que compartilham.

A força braçal é rítmica, automática, os músculos funcionam enquanto os olhos desejam um repouso, o fechar das cortinas. Rahul Jain enquadra os quilômetros de tecidos como turbulentas cascatas, o tecido que é posto à prova, que se estica e é embalado, armazenado num imenso depósito, onde os pedaços descartáveis, perto de poças d’água, servem como leitos para os corpos. Os tecidos possuem mais vida que os traços humanos, estão limpos, higienizados; aqueles que não servem viram cinzas, transformam-se em marcas nas testas, hematomas do calor do fogo.

“Máquinas” possui uma fotografia meticulosa, por vezes espetaculizadora demais, falta-lhe um pouco de sobriedade, mas é recompensada com o som, o incessante ranger das engrenagens, o grito das máquinas, de todas elas, uma sinfonia de enclausuramento bélico. Testemunhos se colocam entre rochedos de tecidos, dando luz a um confessionário. “A pobreza é um assédio”, diz um dos entrevistados, que precisa viajar mais de 1600km num trem abarrotado de gente até o destino do trabalho. Trinta e seis horas de pé, sem água ou comida, para depois fazer turnos de 12h nas fábricas, às vezes dois turnos ao dia, a vida que se esvai nas cascatas, nas tintas que são preparadas pelos próprios punhos. “Não me sinto explorado”, continua dizendo, “se viajo quilômetros, foi uma escolha minha, eu preciso pagar as minhas dívidas”. Os funcionários recebem o equivalente a R$10,00 por turno. “Eles já estão acostumados, encontro-os sempre relaxando”, diz um dos donos da fábrica, “Há dez anos os meus trabalhadores ganhavam três vezes menos. Eu tripliquei o salário deles, e eles continuam relaxando”.

O que vemos é a automação do movimento em um grau de impassibilidade, a preminente falta de empatia do poder e a ingenuidade da necessidade de sobrevivência do operário, que carrega um corpo transformado não só em máquina, mas em capital. Uma das sequências finais do filme, uma tomada aérea que desbrava a fumaça escura e indecente exalada pela fábrica, fez-me lembrar do filme-ensaio de Harun Farocki, “A saída dos operários da fábrica” (Arbeiter verlassen die Fabrik, 1995), um exímio trabalho analítico acerca da representação da imagem da fábrica no cinema. Farocki sugestiona que as fábricas são campos de trabalho forçado, com operários marchando em coro de ópera, aludindo às imagens dos campos de concentração durante a Segunda Guerra Mundial. Se por um lado Rahul Jain privilegia uma encenação quase performática da repetição, o triunfo de “Máquinas” está em sua objetivação de uma realidade dura e cínica, na dupla exploração da mão-de-obra: a mecanização dos endividados e o seu valor de exportação.

Corpo Estrangeiro (Jassad Gharib, 2016), por outro lado, mostra o corpo praticamente em ato de uma prostituição narcisista burguesa. O filme acompanha a personagem Samia (Sarra Hannachi), uma cidadã tunisiana recém-chegada na França, que, ao perder seus documentos, sai à procura de trabalho, desejosa também em se livrar da proteção e investidas violentas de Imed (Salim Kechiouche), um amigo de infância que atualmente possui um bar na capital.

A cineasta Raja Amari trabalha muito com a ambiguidade de suas personagens. Samia luta com um passado problemático com seu irmão – de quem ninguém tem notícias há anos, após ele ter sido preso por fazer parte de um grupo extremista -, ao mesmo tempo em que busca por uma liberdade não vinculada às suas raízes. É uma jovem ciente de suas escolhas e de seu corpo, não se permitindo a tradições patriarcais e religiosas. Imed é o sujeito aproveitador,  tratando Samia como posse. Quando Samia começa a trabalhar como doméstica para Leila (Hiam Abbass), uma típica personagem burguesa parisiense, recentemente viúva e que necessita de ajuda com a organização das coisas de seu falecido marido, um jogo de mútua exploração se inicia. Leila, inicialmente relutante em contratar uma cidadã ilegal, enxerga em Samia a sua própria juventude perdida, assim como uma companhia para preenchimento do luto. Leila veste Samia “apropriadamente, para não causar suspeitas”, pagando-lhe com um bom salário e um quarto em seu apartamento. Samia é um manequim, um corpo estrangeiro explorado pela segurança do capital.

Essa relação de conflitos de interesses pessoais pode parecer bastante impactante até a primeira metade do filme, contudo, se perde gradativamente com o crescimento de Imed na trama, que passa a se relacionar com Leila com os mesmos princípios, sendo tentado quando Samia, enciumada, desperta a sua sexualidade e fanatismo.  É quando a questão política de “Corpo Estrangeiro” se torna uma camada transparente numa espécie de triângulo amoroso despontado, praticamente novelístico, que só não se torna demasiadamente massante pela performance de seu elenco. Mesmo o estranho vínculo fraternal entre Samia e Leila, então abalado com a presença de uma figura masculina, nunca convence com a incisividade de ambas as personagens. Raja Amari acredita demais numa visão romântica e na alteridade quase imediata das personagens, quando, em tempos de guerra, se carece tanta humanidade e empatia – falta uma solidificação austera à trama para soar-se menos como “uma história de cinema”.

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Olhar de Cinema – “Alipato – A Brevíssima Vida de um Malandro”

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Assim que cheguei em Curitiba, ouvi muitos burburinhos sobre o filme filipino Alipato – A Brevíssima Vida de um Malandro (Ang Napakaigsing Buhay Ng Alipato, 2016), que foi definido pelos programadores como “uma afronta ao espectador”, um filme que possivelmente geraria um enorme desconforto. Sendo assim, a curiosidade fez com que eu abdica-se a sessão de “História da Noite” para conhecer essa obra que dificilmente conseguirá uma distribuição.

Se por um lado o premiado cineasta Lav Diaz retrata a situação pós-ditadura nas Filipinas com bastante naturalismo, filmes que mostram o reflexo de uma gestão autoritária de mais de vinte anos do ex-presidente Ferdinando Marcos, Khavn De La Cruz filma “Alipato” enquanto ficção científica, os anos de 2025 e 2053, para retratar a sociedade e a política contemporâneas, caminhando a um novo sistema autocrático com o atual regime do presidente Rodrigo Duterte, que se comparou à Hitler em setembro do ano passado ao expor seu programa de erradicação das drogas no país: chacinando os dependentes químicos (em agosto de 2016, estima-se que 36 pessoas eram mortas por dia na guerra contra as drogas).

Neste quesito, Khavn é corajoso o suficiente ao mostrar um cenário pós-apocalíptico nas Filipinas, uma verdadeira guerra civil onde uma gangue de crianças toma o poder, cometendo as mais impensáveis das atrocidades. São crianças que conhecem a fome, que convivem entre barracos e depósitos de lixo, e que buscam uma liberdade de expressão e de autoafirmação por intermédio da violência, das drogas e do sexo. Khavn De La Cruz, num flerte com Larry Clark (Kids, 1995) ou Harmony Korine (Trash Humpers, 2005), faz um trabalho amplamente subversivo, antiestético, com imagens que soam grotescas, que perturbam e ressonam por muito tempo após os créditos finais do filme. É uma terra de ninguém, da desesperança, do desespero. Um concerto da morte, em que lápides se enraízam cotidianamente. Mas Khavn não faz de “Alipato” uma estetização da violência, embora gráfica, embora sempre muito presente. É nítido o seu engajamento crítico, que se firma a um hiper-realismo sensorial – o filme causa medo, pode sim despertar uma angústia, a angústia da incerteza, se até o fim do dia não nos transformaremos num porco que caminha ao abate.

“Alipato” é profano. Sua câmera sofre de sociopatia, uma câmera urubu, que sabe como enquadrar a carne e o lixo. Uma câmera que se permite ao tempo. A imagem inicial já é a primeira provocação, a gente sente. A gente também ouve os gritos, o apito, até sente o cheiro da fumaça tóxica, do fascismo que se coloca como o desastre de Chernobyl. A transmutação da mente – do homem que dialoga com a câmera, que catarra palavras inaudíveis, intransferíveis, inalcançáveis…  O homem de um futuro-presente. Dos desfigurados, dos violentados, dos que não venceram a cólera. É o homem bruxo, o homem bicho. O homem que nasce com células do ódio no cordão umbilical.

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Olhar de Cinema – Primeiras impressões

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Ora e outra aparece alguém me perguntando de onde eu tirei o nome deste blog. Sem Tambor, nem Trompete. Inevitavelmente, à primeira vista é difícil assimilá-lo com a proposta dos textos: o Cinema – ou pequenos olhares sobre o movimento; a ideia inicial do blog era fugir de academicismos e buscar em textos curtos, também no formato de crônica, experiências pessoais sobre os filmes que assisto. É verdade que, com tanta rede social ao nosso alcance, parece que o público cada vez mais prefira ler no Facebook, palavras objetivas!, e um blog, sem muita disciplina, pode ficar assim, um pouco desolado. Mantenho os estudos, perto da qualificação no mestrado. Também dei algumas aulas. Novas experiências têm surgido. Sinto que às vezes preciso de mais tempo. De todo modo, continuo com os filmes. E continuo divagando – pois volto, então, ao título. Sem Tambor, nem Trompete.

Um dos primeiros filmes de François Truffaut que assisti, talvez com meus dezoito ou dezenove anos, foi o simpático “Domicílio Conjugal” (Domicile conjugau, 1970), estrelado por Jean-Pierre Léaud, que mais uma vez encarna o seu célebre personagem Antoine Doinel, agora encarando a vida matrimonial, novas responsabilidades, frustrações com o trabalho e um bebê que está por vir. Dado momento, ao encontrar-se com um conhecido, Antoine se queixa do andamento do livro que está escrevendo, que tampouco possui um título, embora saiba que será um livro sobre memórias de sua infância e juventude. “Ora, há trompete em seu romance?”. “Não”. “Há tambor em seu romance?”. “Não”. “Pois dê a ele o nome de ‘Sem Tambor, nem Trompete’!”.

O diálogo acima é um desses memoráveis, divertidos e dos mais absurdos. Digo mais: quase um flerte com supercalifragilisticexpialidocious, aquilo que devemos dizer quando não temos o que dizer, palavra esta que pode mudar a nossa vida, uma aula que aprendi com Julie Andrews em Mary Poppins (1964).

Voltando às atividades do blog. É incrível o tanto de gente que tem surgido, tantas conversas calorosas sobre o Cinema, e mesmo por isso, sempre há algo a dizer e escrever.

Dei-me uma folga nesse fim de semana de junho. Findou-se o estágio docência e logo preciso regressar à minha pesquisa do mestrado. Viajar é bom, e estava precisando desse tempo. Vim à Curitiba conhecer o muito comentado Olhar de Cinema. Não ficarei até o fim do festival, mas pretendo escrever sobre tudo o que der nesses quatro dias aqui hospedado. O festival está com uma programação bem diversificada, com mostras competitivas de longas e curtas-metragens, além de uma cuidadosa retrospectiva do diretor alemão F. W. Murnau e uma seleção de filmes da cineasta tailandesa Anocha Suwichakornpong, cuja obra não conhecia. Chance, então, de (re)descobertas.

Comecei o dia com uma cópia restaurada e cristalina de Fausto (1926), filme baseado no poema homônimo de Goethe. Murnau é um dos expoentes do cinema expressionista alemão, difícil então se distanciar das características do movimento, cujos filmes exploravam uma dramatização soturna, com deformações do espaço, expressividade exacerbada de seus atores e o uso recorrente de sombras. Essa junção de elementos exteriorizava os sentimentos das personagens, colocando-os em espaços opressivos. De fato, quase noventa anos depois de seu lançamento, “Fausto” continua proporcionando uma grata experiência pictórica, uma obra de efeitos visuais artesanais, lúdicos, aflitivos, um cais de sombras e névoas que parece realmente fumegar diretamente do inferno.

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Fausto (1926), direção de F. W. Murnau | São Jerônimo que Escreve (1605), pintura de Caravaggio

Algo curioso e que talvez nunca me tinha passado, essa expressividade cênica, seus contornos e brilhante movimento, lembraram-me também da composição barroca, especificamente o barroco italiano, sua técnica de contrastes de luz e sombra, o chiaroscuro, e um posicionamento menos etéreo do objeto retratado – deus, diabo e os santos humanizados. Fausto é praticamente um santo, um escolhido de deus, que é confrontado pela imagem demoníaca de Mefistófeles, retratado no filme com mais exagero, diria até caricato, cacoetes que o efeminizam e infantilizam, transformando sua força controladora em um bobo da corte. Última produção alemã de Murnau, “Fausto” transita entre a farsa e o horror, conseguindo uma potência visual impressionante graças ao grande fotógrafo Carl Hoffmann, que também trabalhou com outros cineastas consagrados como Fritz Lang e Gustav Ucicky.

O segundo longa-metragem do dia foi uma co-produção entre a Polônia e a Rússia, Convicções (Ubezhdeniya, 2016), documentário dirigido por Tatyana Chistova, bastante intimista, sobre o recrutamento militar russo. Chistova faz um filme cru, buscando uma aproximação que não está preocupada com esteticismos. O uso da câmera é simples, uma captação com angulações desconfortáveis, planos que transmitem certa insalubridade, uma opressão de corpos amontoados sem muita perspectiva. A câmera acompanha “muitas histórias, julgamentos e diálogos”, conforme letreiros que abrem o filme.

Dessa maneira, a cineasta observa um sistema muito rígido, de obrigação civil, em que jovens garotos, ao atingirem sua maioridade, precisam se alistar a uma das forças armadas. Muitos desses jovens alistam-se contra a sua vontade, como acontece na maioria dos sistemas militares mundiais, e tentam recorrer à justiça quando aceitos ou indiciados por evasão, mostrando-se bastante engajados com causas pacifistas, a favor da liberdade de escolha, criticando os métodos de exposição e humilhação pelos quais são submetidos, muitas das vezes ferindo a integridade ética, descriminando orientações sexuais e problemas familiares. Os jovens militantes alegam uma “escravidão do alistamento”, criticando a atual gestão política nacional, em atos que desestabilizam as forças superioras locais, mas também que evidenciam o cruel abuso de autoridade.

Num dos momentos mais tensos do filme, Roman, um garoto de vinte anos que está sendo processado por evasão ao regime militar, declara-se inocente, um pacifista, num inspirado depoimento com argumentos bem pautados, suas convicções, que são descartadas pela juíza, imediatamente cessando suas escritas sobre o caso, não para dedicar sua atenção a Roman, mas sim em demonstração de total falta de interesse – do Estado.

A montagem e o uso da trilha-sonora, um hard rock russo, soam bastante críticas e irônicas até os créditos finais do filme, quando fotografias de arquivo de cidadãos se alistando durante a Segunda Guerra Mundial estendem-se de lado a lado da tela – a Segunda Guerra, mencionada como “a grande guerra patriótica” por um dos recrutadores. “Convicções” é um retrato objetivo sobre um antigo sistema ostensivo à violência – como uma sequência em que os soldados fotogravam novos recrutas fardados e armados, sorridentes -, e à crenças patriarcais. “Você só conseguirá uma mulher se você for um militar”, “ele é homossexual, não pode ser são”, “pacifista, para mim, era uma denotação negativa”. Um filme de muitos diálogos, de fato. E de um incontentável e perturbador silêncio.